Morte em ré menor

Poupo-me e poupo-vos a considerações – e tantas existem – que poderiam ser oportunas para avaliar as causas da violência doméstica ou maus-tratos.
Sou, por natureza, light, não me apetece ir aqui ao fundo (ou fundos) desta questão e tive a ventura de nunca ter assistido aos horrores de maus-tratos físicos que se descrevem na imprensa.
Acresce que, quanto à coacção moral, tiro de letra.
Já fui, algumas vezes, objecto desse tipo de agressão, só que “Sticks and stones can break my bones, but words will never harm me”.
Nestes casos vejo sempre o agressor como um pobre cobarde cheio de dor de cotovelo e viro-lhe as costas e passa o dito a ser transparente, indiferente, ausente, inexistente, enfim… abaixo de crítica, em definitivo.
Sei que assim não acontece com muitas mulheres, por serem de vidro psicológico, por terem tido maus exemplos numa infância em que as progenitoras se assumiram como seres humanos de segunda categoria, por outros motivos que conheço e outros ainda que, de todo, me passam ao lado.
A tudo isto não é alheia a nossa herança judaico-cristã.Basta verificar que foi aqui, nesta ilhota de secular cristandade, que a mulher mais ardeu na fogueira e, hoje, leva mais nas lonas.
Mas nada disto justifica o crime nem iliba o criminoso.
O que lhe dá a impunidade é a conivência de muitos agentes ou operadores judiciários, desde o polícia que dissuade a mulher de fazer a denúncia, àquele que falsamente a convence que o auto de notícia está elaborado – quando se limita a ter uma conversa de pé de orelha com o agressor, quase em amena cavaqueira, sobre os defeitos da “gaja” – até ao Conselheiro que atenua a pena do homicida porque a vítima tinha “deixado esturricar a carne do jantar” desse dia e ia ao café com as amigas de vez em quando.
Porque nestes casos, em particular, a vítima, por ser mulher, é tratada como ré menor.
Quer queiram quer não, desde que haja queixa sem consequências, a mulher morre por agressão do homicida mas com a cumplicidade de outrem.
Gostava de saber quantos dos nossos agentes tiveram um processo disciplinar por entenderem que cumpriam o seu dever com um mero encolher de ombros ou uma bruta gargalhada, protegendo, assim, o cidadão, mas condenando à morte a cidadã.
Gostava de saber onde raios de carga de água essa gente – toda essa gente – se convenceu que havia um preceito constitucional que defendia o “Direito de porrada até à morte”.
Gostava de saber - e disso nada li - que estilhaços arrastam as sobreviventes e seus filhos, pelo resto da vida.