quarta-feira, fevereiro 22, 2006


Morte em ré menor


Poupo-me e poupo-vos a considerações – e tantas existem – que poderiam ser oportunas para avaliar as causas da violência doméstica ou maus-tratos.

Sou, por natureza, light, não me apetece ir aqui ao fundo (ou fundos) desta questão e tive a ventura de nunca ter assistido aos horrores de maus-tratos físicos que se descrevem na imprensa.

Acresce que, quanto à coacção moral, tiro de letra.
Já fui, algumas vezes, objecto desse tipo de agressão, só que “Sticks and stones can break my bones, but words will never harm me”.
Nestes casos vejo sempre o agressor como um pobre cobarde cheio de dor de cotovelo e viro-lhe as costas e passa o dito a ser transparente, indiferente, ausente, inexistente, enfim… abaixo de crítica, em definitivo.

Sei que assim não acontece com muitas mulheres, por serem de vidro psicológico, por terem tido maus exemplos numa infância em que as progenitoras se assumiram como seres humanos de segunda categoria, por outros motivos que conheço e outros ainda que, de todo, me passam ao lado.

A tudo isto não é alheia a nossa herança judaico-cristã.Basta verificar que foi aqui, nesta ilhota de secular cristandade, que a mulher mais ardeu na fogueira e, hoje, leva mais nas lonas.

Mas nada disto justifica o crime nem iliba o criminoso.

O que lhe dá a impunidade é a conivência de muitos agentes ou operadores judiciários, desde o polícia que dissuade a mulher de fazer a denúncia, àquele que falsamente a convence que o auto de notícia está elaborado – quando se limita a ter uma conversa de pé de orelha com o agressor, quase em amena cavaqueira, sobre os defeitos da “gaja” – até ao Conselheiro que atenua a pena do homicida porque a vítima tinha “deixado esturricar a carne do jantar” desse dia e ia ao café com as amigas de vez em quando.
Porque nestes casos, em particular, a vítima, por ser mulher, é tratada como ré menor.

Quer queiram quer não, desde que haja queixa sem consequências, a mulher morre por agressão do homicida mas com a cumplicidade de outrem.

Gostava de saber quantos dos nossos agentes tiveram um processo disciplinar por entenderem que cumpriam o seu dever com um mero encolher de ombros ou uma bruta gargalhada, protegendo, assim, o cidadão, mas condenando à morte a cidadã.

Gostava de saber onde raios de carga de água essa gente – toda essa gente – se convenceu que havia um preceito constitucional que defendia o “Direito de porrada até à morte”.

Gostava de saber - e disso nada li - que estilhaços arrastam as sobreviventes e seus filhos, pelo resto da vida.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006


Parabéns escritos na areia

A maresia não apagou os dois anos de prosa da "nossa" Vieira, talvez porque as ondas recuassem perante a sua palavra sensível, feroz, doce ou revoltada, mas sempre genuína.

Quase nenhum dia sem o gosto dessa autêntica partilha.

Muitos parabéns.

domingo, fevereiro 19, 2006


Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio

[Dawn at the Fish Haul by Tom Ratliff]

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.


Ricardo Reis

terça-feira, fevereiro 14, 2006


Um pequeno pedaço de paixão


... ...

And we will talk, until thought's melody
Become too sweet for utterance, and it die
In words, to live again in looks, which dart
With thrilling tone into the voiceless heart,
Harmonizing silence without a sound.
Our breath shall intermix, our bosoms bound,
And our veins beat together; and our lips
With other eloquence than words, eclipse
The soul that burns between them, and the wells
Which boil under our being's inmost cells,
The fountains of our deepest life, shall be
Confus'd in Passion's golden purity,
As mountain-springs under the morning sun.
We shall become the same, we shall be one
Spirit within two frames, oh! wherefore two?
One passion in twin-hearts, which grows and grew,
Till like two meteors of expanding flame,
Those spheres instinct with it become the same,
Touch, mingle, are transfigur'd; ever still
Burning, yet ever inconsumable:
In one another's substance finding food,
Like flames too pure and light and unimbu'd
To nourish their bright lives with baser prey,
Which point to Heaven and cannot pass away:
One hope within two wills, one will beneath
Two overshadowing minds, one life, one death,
One Heaven, one Hell, one immortality,
And one annihilation. Woe is me!
The winged words on which my soul would pierce
Into the height of Love's rare Universe,
Are chains of lead around its flight of fire --
I pant, I sink, I tremble, I expire!

... ...

Percy Biysshe Shelley, extracto do Epipsychidion.


Happy Valentine´s Day!

segunda-feira, fevereiro 13, 2006


Freitas e o campeonato euro-árabe de futebol

De acordo, desde que Freitas seja o árbitro do Irão-Dinamarca.


O medo


O escritor dinamarquês Kare Bluitgen não conseguiu encontrar um ilustrador para o seu livro infantil sobre a vida de Maomé. Todos tinham medo de represálias. Medo de lhes advir a mesma sina do cineasta Theo van Gogh, assassinado por denunciar a violência praticada contra as mulheres na comunidade islâmica. Ou a de Salman Rushdie, dos seus tradutores e editores um pouco por todo o mundo.

Perante isto, o editor de cultura do jornal Jillands Posten convidou quarenta desenhadores para elaborar cartoons com o profeta. Só doze aceitaram. Os outros vinte e oito ou tinham mais que fazer, ou tiveram medo. Medo de lhes advir a mesma sina de Hirsi Ali, que vive escondida e sob protecção policial por ter colaborado com Theo van Gogh. Ou de Taslima Nasrin, cujos livros foram queimados em público e que viu lançada contra si uma fatwa, por ter ousado sugerir que o Corão devia ser revisto.

Os cartoons, publicados em Setembro de 2005, suscitaram a ira de dirigentes religiosos muçulmanos na Dinamarca, ira que foi deliberadamente exportada e disseminada por todo o mundo árabe. Dessa ira resultaram já dez mortos, dezenas de feridos, embaixadas destruídas, retirada de pessoal diplomático e de missões de ajuda internacional, ameaças de bomba e jornalistas despedidos.

É o círculo do medo, propalado pelas hierarquias e assimilado pelos crentes como guerra santa. O terror é modus operandi de extremistas e muitos muçulmanos contentar-se-iam com manifestações pacíficas? Pois, como muitos muçulmanos não estarão de acordo com a violência contra as mulheres que desobedecem aos preceitos religiosos que as mantém como cidadãos de segunda. O que é que isso altera, quando o medo lhes tolhe a capacidade de se oporem ao terror institucionalizado?

O medo é intolerável. Nenhum artista deve deixar de criar por medo. Nenhum jornalista deve deixar de relatar por medo. Nenhum ser humano deve ter de viver com o medo. NADA, nenhuma religião, nenhum deus, nenhum profeta, nenhuma civilização justifica os fautores da violência e os cultores do medo.

A fraca qualidade da maioria dos cartoons dinamarqueses é pormenor pingente. A ideologia de centro-direita do jornal que primeiro os publicou, absolutamente despicienda. O direito à indignação de quem acha blasfemo retratar um profeta nem sequer está em causa. Justificar o terror em requebros de respeito pela religião, dicotomias políticas ou teorias geoestratégicas é coisa de pusilânimes, que se agacham sob a máscara de pruridos diplomáticos, ideológicos, ou académicos. Cumpre-nos a todos recusar o medo, o medo que corrói, o medo que destrói, o medo que diminui cada ser humano.

sábado, fevereiro 11, 2006


A liberdade a duas velocidades




Hoje, José de Faria Costa, escreveu sobre o que, de algum modo, tem dividido opiniões na blogosfera, como noutros espaços.
Qualquer comentário meu arriscaria retirar o sabor de tanta lucidez. Por isso, limito-me a transcrevê-lo.

A questão das caricaturas de Maomé é, em si mesma, um cadinho (infelizmente incandescente) de problemas complexos que merece estudo, reflexão e ponderação pausados. Espero, no pouco espaço que me é reservado dentro destas “Notas Imperfeitas”, poder ajudar, de alguma maneira, a clarificar aquilo que, por natureza, é denso, espesso e de difícil compreensão. E, porque tudo é intrincado e quase inconsútil (tudo se liga a tudo e parece não haver costuras ou hiatos entre aquilo que queremos distinguir), farei um esforço acrescido para só abordar um pequeníssimo aspecto desta problemática.
Toda a gente salienta o absurdo, o irracional e a desmesura das reacções perante a eventual gravidade do acto. Por certo. Mas o ponto que me proponho salientar não passa propriamente por aí, nem sequer por qualquer aprofundamento do que se deva entender por liberdade de expressão. Passa, exclusivamente, pelo significado simples imediato do que é liberdade de expressão. Perante tais desmandos, perante tanto ódio e incompreensão, seria estultícia se nos preocupássemos com densidades normativas, afinamentos e bizantinices sobre o que é a verdadeira liberdade de expressão. Sobre até onde ela vai (como, aliás, fez o inconcebível comunicado do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, em jeito onde transparece o mais antiquado formalismo jurídico que, de há muito, se sabe nada explicar ou acrescentar ao cerne da questão). Sobre o seu sentido. Sobre a sua verdadeira relevância no contexto da conflitualidade contemporânea, nada disto tem interesse quando nos confrontamos com os fundamentos últimos. Vale por dizer: não nos devemos preocupar com o sagrado (por maior respeito que ele nos mereça) quando franjas substanciais (ou até comunidades inteiras) dos que se alimentam, precisamente, desse sagrado, o que querem é espalhar morte e destruição.
Há momentos em que todos nós, por fás ou nefas, dizemos, sem hesitações: basta. O mesmo se passa com os povos e com as civilizações (independentemente do que se queira definir com uma tal categoria do pensamento político e histórico). E, pelos deuses, maiores e menores, não se venha dizer, com complexos de culpa que se não sabe donde vêm, que, deste jeito, se está a fomentar o conflito, a atazanar a intolerância, a diabolizar quem contra nós age dessa maneira. Quem o disser está no mínimo a ser ingénuo ou, então, a deixar-se enrolar na falácia de que, divinamente, a culpa é nossa e, por isso, temos que sofrer todas as desventuras, afrontas, males e ultrajes.
Não podemos abandonar a cidadela que a liberdade de expressão para nós representa. Não podemos capitular e abandonar este baluarte de uma certa forma de estar no mundo e de perceber o mundo. Se o fizermos perdemos um dos traços mais fortes e distintivos deste nosso tempo. Que é nosso. Que nós construímos, por certo que com todos. A construção europeia, com todo o seu calvário de erros monstruosos e de inarráveis ignomínias, tem-se mostrado como um lugar de inclusão. De inclusão pela diferença que só a liberdade de expressão pode permitir e potenciar.
Daí que, partindo destes pressupostos, tenha vindo a assistir, com espanto, pelo menos em alguns meios de comunicação social, a algum arrefecimento na defesa da liberdade de expressão. Ora, não quero crer, não posso crer, que haja dois pesos e duas medidas. Não posso crer que se rasguem vestes e se lancem cinzas nos cabelos, em nome, precisamente, da liberdade de expressão, quando sectores mais retrógrados e conservadores da hierarquia da Igreja Católica se insurgem contra actos tidos por ela como ofensivos dos sentimentos religiosos e, agora, perante este mar de violência, tudo se cale e não se levante a bandeira, bem alto, da liberdade de expressão. Não acredito. Ou melhor: acredito que estão momentaneamente desatentos e que, logo que se derem conta do que se está a passar, não deixarão de vir a terreiro defender a liberdade de expressão. Porque uma outra coisa também é certa: é pilar do nosso sentir comum a ideia simples de que o igual tem de ser tratado igualmente.


[Notas Imperfeitas, in Primeiro de Janeiro, 11 de Fevereiro de 2006]

sexta-feira, fevereiro 10, 2006



Ora, ora... aposto que ainda se arranjam setenta para premiar o nosso inenarrável MNE, caso decida fazer-se explodir à porta da Embaixada da Dinamarca. Aliás, um excelente uso para duas espécies em vias de extinção: as virgens e os camelos.



Confesso que preferia um Brie francês. Os sacrifícios que se fazem pela liberdade de expressão...


Peculiaridades

1. Comprar livros compulsivamente.
(as in " - céus! mais uma grosa de livros? - bom, passei pela FNAC para poupar uma hora de estacionamento…")
2. Organização, organização, organização…
(as in "onde é que eu pus a lista das minhas trezentas listas de coisas para fazer?")
3. Cantar no carro, quando sozinha.
(e só, até porque é chato ver pessoas a saltar de veículos em andamento)
4. Não fixar caras.
(as in "ah pai, desculpe, não o reconheci sem barba… o quê, nunca usou barba? certo, claro, irei chamar pai a outro")
5. Esquecer o anti-benfiquismo primário quando vou ao cabeleireiro.
(as in " vermelho flamejante? é capaz de ficar giro…")

Vítimas, nem pensar. Estas correntes são uma valente pessegada e só o facto da Francisca ser um caso de gentileza raro me levou a responder. Mas não vou implicar terceiros: os simpáticos não merecem e os antipáticos não carecem.


"Beauty, horror and despair"



[Daqui]

quinta-feira, fevereiro 02, 2006


A corrente da "Janela Indiscreta"



Fui convidada por um dos meus bloggers "a não perder" para continuar uma corrente que revele cinco hábitos ou manias que nos distingam dos demais (na generalidade) e passar a corrente a outras cinco "vítimas" que devem, na introdução, explicar estas regras do jogo: cinco hábitos e cinco pessoas obrigatoriamente notificadas para o respectivo blog.

Pois, aqui vai o streep-tease das minhas manias, brrrrr:

1. Não consigo ver um animal abandonado. Pertenço e ajudo as poucas organizações que os protegem, promovo e ajudo os particulares que os alojam e o grosso da massa vai para o veterinário dos que tenho em casa: um cão e cinco gatos e meio (o meio é uma she - Su Yin - que só se alimenta e não pernoita por incompatibilidade com a Ydia que tem muito mau feitio). Há alguns meses vi um cão rafeiro, sujo e esfaimado que de imediato acolhi e fez companhia ao cão que vive connosco (eles vivem connosco, não nos pertencem), mas depois do banho, alimento, vacinas e alguns dias, saltou entre as grades e foi ter com o "dono" que, apesar de não ter nem para si, o procurava, ooops engano, pedi desculpa, o homem agradeceu e o cão transbordava felicidade.

2. Nunca saio de casa desmaquilhada. Como resultado, já fiz duas cirurgias com muito boas cores.

3. Tenho o vício de rir: antes parar de fumar que parar de rir.

4. A mania das citações: There is nothing new under the sun.

5. Tenho mesmo que beber dois cafés e um sumo de laranja antes de acordar.

E os cinco nomeados para continuar a corrente são: a Prima, o mfc, a Laurindinha, o Xavier e o LNT